16 dezembro 2003

desassossego

"os momentos tardavam ao som dela. a solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia sonhar.os objectos vagos, participantes, na sombra da minha insónia, passam a ter lugar e dor na minha desolação.(...)E para quê exprimir?o pouco que se diz, melhor fora ficar não dito.(...)porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo.(...)Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às cousas e às palavras.nada tem um sentido."
"sei que despertei e que ainda durmo.num sonho que é uma sombra de sonhar.uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me.sou todo confusão quieta.há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela.um grande cansaço é um fogo negro que me consome...uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita.eu sonho e por trás da minha atenção sonha comigo alguém...e talvez eu não seja senão um sonho desse alguém que não existe...a nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte.davamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.e subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...o nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tinhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado, nas almas,sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.a nossa vida não tinha dentro.eramos fora e outros.desconheciamo-nos, como se houvessemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...(...)na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais...como é suave saber que nada vale a pena...desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos.fujamos a ser nós...não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silencio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...a nossa vida era toda a vida....o nosso amor era o perfume do amor...vivíamos horas impossiveis, cheias de sermos nós...e assim nós morremos a nossa vida, tao atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que eramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...a manhã rompeu, como uma queda do cimo pálido da Hora...acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida,as achas dos nossos sonhos..."

Bernardo Soares in Livro do Desassossego

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