trapos velhos
Com movimentos grisalhos, o velho aproximou-se dum antigo banco de jardim. quantas almas ali se sentaram, em silêncio. outras, declarando amores passageiros de joelhos erectos num canteiro de solo feito por pés singelos, em redor de um verde maciço e rasteiro. o velho pensava longamente sobre todas as conversas decorridas naquele espaço, sobre os monólogos que uma mente louca dispersara ao vento, esperando que as sementes da sua doença encontrassem terreno fértil num lugar sem nome. enquanto recolhia relíquias para a sua colecção, examinando longamente cada recanto daquela pequena maravilha, pensava se a dona daquele objecto teria chorado enquanto alguém, que outrora lhe prometera ilhas de paixão eterna, agora lhe dizia que tudo não passara de um engano, sem que a culpa fosse dela. teria alguém, num desejo de volúpia, entregado seu corpo a um estranho orgasmo naquelas velhas tábuas refundidas por breves arbustos? gemeria essa pessoa? teria alguém tido a bondade de pintar a velhota que todos os dias passeia ao fim da tarde, desamparada na sua muleta saudosa de um tempo já há muito ido. talvez uma jovem tenha sido assaltada, ameaçada enquanto tremia e pedia que a deixassem. teria alguém ajudado a rapariga ou teria ela ali ficado, pensando, com uma taquicardia presa numas rótulas demasiado cansadas para fugir. perguntava-se o velho sobre quem teria pintado tanto aquele pequeno objecto. talvez uma prostituta, de mini-saia brilhante, grandes e delgadas botas brancas, de unhas compridas, sujas de um vermelho-sangue.os seus cabelos oleosamente compridos, pintados num tom amarelo de quem pede algo. ah, teria ela ali esperado promiscuamente por um cliente? talvez outra mulher entre muitas se tivesse confessado neste lugar a um padre ou mesmo, quem sabe, a um deus desconhecido e reencontrado num canto obscuro dum imenso jardim.
o vento soprava entre as copas das árvores, contando segredos aos mais atentos. o frio da tarde já se fazia sentir entre as linhas rasgadas de uma camisa gasta pelo tempo. desejava ir para casa. a sua esposa, vivente apenas numa moldura emergindo entre uma estante e um frigorífico, esperava-o. antes de poder jantar com ela, teria ainda que guardar as suas preciosidades. dividi-las por tons de tristeza, angústia, pressa, alegria, paixão, sofrimento. queria ainda mirar as suas conquistas e imaginar todas as donas de beatas com batôn ainda por encontrar.
<< Página inicial